Apesar do forte apelo popular, após mais de dois anos em vigor, a Lei Seca comprova novamente seu fracasso. Além do índice de acidentes e mortes no trânsito nas rodovias federais demonstrar que pouco serviram as blitze e campanhas de conscientização, o Supremo Tribunal de Justiça deu o “golpe certeiro” na lei com a extinção da ação penal contra um motorista paulista que, embriagado, se recusou a fazer o teste do bafômetro.
Desde o início, a Abrasel alertou para a inviabilidade da legislação e foi primeira e única entidade que questionou sua constitucionalidade com uma Adin no Supremo Tribunal Federal (STF). Demonstramos juridicamente que a lei foi mal elaborada e deixou brechas para inúmeras interpretações e o pior, para a impunidade, como aconteceu neste julgamento do STJ. Antes da Lei Seca, bastava o auto de constatação de embriaguez feito pela polícia no ato de flagrante para comprovar que o condutor sob efeito de álcool oferecia perigo a outros para que ele fosse punido. Entretanto, quando a nova lei entrou em vigor, estabeleceu-se o nível de alcoolemia e excluiu-se a necessidade de exposição de dano. A lei delimitou ainda a comprovação da embriaguez por meio do teste do bafômetro ou do exame de sangue.
Assim, hoje mais se absolve do que pune em nosso país. E quando há punição, esta é para cidadãos responsáveis, aqueles que tomam apenas uma taça de vinho para acompanhar o jantar. Quem realmente abusa do uso da bebida, continua em liberdade e depois é flagrado novamente bêbado ao volante.
Isto acontece porque rege na Constituição Federal que ninguém é obrigado a produzir provas contra si mesmo. Como o motorista não é obrigado a se submeter aos testes e só o fazem quem desconhece seus direitos, na maioria das vezes ele sai impune. Como se não bastasse, se um sujeito que foi condenado por dirigir embriagado antes do advento da lei seca, e à época não usou o bafômetro, pode ter sua condenação anulada. A nova lei retroage em benefício do culpado.
A cada balanço apresentado pela Polícia Rodoviária Federal (PRF), lamentavelmente, a ineficácia da lei se torna ainda mais evidente. Os últimos dados divulgados, no dia 20 de setembro, pelo Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit), com base em informações da PRF, mostram uma realidade estarrecedora. O número de mortes nas rodovias federais no ano passado foi o maior dos últimos 12 anos: 7.383 pessoas perderam a vida em acidentes nas estradas brasileiras. O mais triste é que estes números continuam em alta em 2010 e podem ser até 20% maiores do que mostram as estatísticas oficiais, pois parte das mortes ocorre em hospitais e não é registrada.
Desde a promulgação da lei, a Abrasel empreendeu uma luta árdua e sistemática denunciando à mídia o sucesso falacioso divulgado e a manipulação de informações a qual a sociedade brasileira estava sendo submetida. Por várias vezes tivemos nossas solicitações de acesso aos balanços negadas, enquanto as autoridades divulgavam apenas dados convenientes, criando comparativos ora em períodos mensais, ora trimestrais, o que dificultava o estabelecimento de uma base de comparação.
Em junho, para marcar o segundo ano de vigência da lei, o Ministério da Saúde reuniu a imprensa para apresentar dados e defender a eficácia da Lei Seca. Forneceram um balanço apenas dos primeiros 12 meses após o cerco aos que bebem e dirigem, em comparação com os 12 meses anteriores. O mais impressionante foi que, mesmo com o alerta da Abrasel sobre a falta de transparência e ausência de informações, ninguém da imprensa questionou sobre onde estaria o balanço do segundo ano. Afinal, as estatísticas sobre acidentes nas estradas brasileiras, antes da promulgação da Lei Seca, estavam sempre disponíveis para todos no mês seguinte à coleta dos dados. Porque não divulgaram os dados de 2009/2010? A resposta veio agora, com resultados ainda piores do que nos anos anteriores à aplicação da lei, registrando o retrato da total ineficácia da medida.
Fica a sensação, depois desse período de intensa luta, que a imprensa de maneira geral ‘comprou’ e ‘vendeu’ em primeiro momento, a ideia de que a Lei Seca resolveria o gravíssimo problema nacional de mortes no trânsito, divulgando dados sem fundamento sobre o sucesso da lei e ignorando por várias vezes nossos alertas.
Outro fato curioso é que antes da Lei Seca, a ingestão de álcool não constava entre as 10 principais causas de acidentes de trânsito e, após a sua promulgação, passou a ser a vilã número um nas estatísticas. Mas, especialistas em transportes por várias vezes apontaram que o aumento da violência no trânsito tem relação direta com crescimento da frota e a falta investimentos na melhoria das estradas. Por parte dos motoristas, os acidentes são normalmente relacionados à falta de atenção e excesso de velocidade.
O risco de mais mortes nas rodovias federais já foi apontado também por auditoria especial do Tribunal de Contas da União há quatro anos. Na ocasião, havia sinais de alta nos acidentes, e o tribunal detectou que a causa principal era o baixo investimento nas rodovias, principalmente na conservação e em sistemas de controle de velocidade. As estradas foram consideradas ruins, mal policiadas e com número insuficiente de radares. Até quando vão ignorar isso?
Nos países onde houve redução de acidentes no trânsito, foram tomadas diversas providências legais e eficazes como fiscalizações constantes, com policiais preparados e equipados; orientação para cumprimento das leis que regulam o consumo de álcool aliado à direção; conservação das vias públicas e rodovias e especialmente campanhas educativas. No Brasil, já tínhamos um Código de Trânsito rigoroso antes da Lei Seca, bastava que ele fosse cumprido.
Apesar da urgência no pedido, até hoje o STF não avaliou nossos argumentos. O silêncio do Supremo além de retardar a reformulação da lei, contribui para que as mortes nas estradas continuem crescendo assustadoramente, pois enquanto o poder público se esconde por trás de uma lei inócua como principal ação para conter a violência no trânsito, outras medidas realmente necessárias acabam não sendo adotadas
Todos os dados recentemente publicados mostram que a discussão sobre a Lei Seca deve ser retomada de forma isenta, clara, transparente e objetiva. E o momento é agora. A imprensa tem um papel relevante a cumprir na condução dessa questão junto à sociedade. Não pode, sob nenhum pretexto, deixar-se seduzir por pirotecnias políticas, cujo único objetivo é desviar a atenção da opinião pública para os graves problemas estruturais do país.
Não defendemos a combinação entre a bebida e a direção e concordamos com a punição de quem exagera no álcool. O que defendemos é que não é coerente e justo que nosso setor seja penalizado com medidas absurdas e apontado sempre como o vilão do trânsito. Acreditamos que a solução passa, necessariamente, pela educação dos motoristas e por uma fiscalização eficiente, prevista pelo artigo 276 do Código de Trânsito Brasileiro, mas que nunca foi aplicada como deveria.
É preciso que o poder público tenha a humildade de reconhecer que errou e editou mais uma lei ineficiente. É preciso buscar uma abordagem mais adequada e responsável para o assunto. Não podemos mais aceitar que o Brasil ocupe a quinta posição no ranking de violência no trânsito, conforme estudo da Organização Mundial de Saúde (OMS). É inaceitável ainda que dois anos depois, os cidadãos que dirigem alcoolizados continuem impunes, que medidas socioeducativas não sejam implantadas e não haja nenhuma melhora em relação à segurança nas estradas.
Pela seriedade da questão, sociedade civil e governantes precisam se unir para criar soluções eficazes para reduzir os acidentes no trânsito e não apenas aplicar medidas punitivas, que restringem a liberdade dos cidadãos e não resolvem o problema. Passou da hora de reverter essas estatísticas!